16.04.20
Impactos da pandemia da Covid-19 nos procedimentos licitatórios: obstáculos na realização de sessões públicas presenciais e na obtenção de certidões e documentos emitidos por entidades públicas
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A dinâmica da evolução da pandemia da Covid-19 (“Pandemia”) trouxe significativos impactos para a continuidade das atividades nos setores público e privado, especialmente considerando a imposição das medidas de isolamento social e quarentena previstas na Lei Federal nº 13.979/2020.
O contexto das licitações e contratações administrativas também vivencia esses impactos e existe uma dificuldade natural para aencontrar soluções e compatibilizar os institutos, regras e princípios vigentes.
Um exemplo que ilustra essa dificuldade foi a necessidade de se editar, com celeridade, a Medida Provisória nº 926/2020 para estabelecer (i) a dispensa de licitação para aquisição de bens, serviços e insumos destinados ao enfrentamento da Pandemia; (ii) a admissão de termo de referência simplificado para a instrução do procedimento de contratação; (iii) a dispensa da exigência de apresentação de documentação relativa à regularidade fiscal e trabalhista; e (iv) a possibilidade de contratação de empresa que esteja com inidoneidade declarada ou com suspensão dos direitos de licitar e contratar com o poder público quando esta for, comprovadamente, a única fornecedora do bem ou serviço a ser adquirido.
Dessa forma, são necessárias medidas que visam a manter a prestação e execução de diversos serviços essenciais e projetos de relevância e interesse estratégico para a Administração Pública. Questiona-se, então, como prosseguir com estes procedimentos licitatórios e contratações no cenário atual, de modo a atender o interesse público.
Sob esta ótica, neste momento, dois obstáculos no âmbito das licitações merecem especial atenção: (i) a impossibilidade de se realizar sessões públicas presenciais; e (ii) as dificuldades na obtenção de certidões de regularidade fiscal e outros documentos em determinados órgãos e entidades públicas.
Impossibilidade de se promover sessões públicas presenciais
O primeiro obstáculo que se impõe, nesse cenário, é relacionado ao fato de que no procedimento licitatório tradicional, regido pela Lei Federal nº 8.666/93 (“Lei de Licitações”), não há previsão normativa que trate da possibilidade de se promover a sessão pública por meio virtual. Com efeito, tal possibilidade só existe no âmbito do pregão eletrônico, que na esfera federal é regido pelo Decreto Federal nº 10.024/2019.
Embora a Lei de Licitações não estabeleça de forma expressa a obrigatoriedade de se receber os envelopes em solenidade pública presencial, depreende-se do texto legal que a exigência tem como fio condutor principal garantir a publicidade e a possibilidade de fiscalização do procedimento por quaisquer interessados. É a grande preocupação com as fraudes ou os desvios na análise das propostas.
A Lei de Licitações também obriga que (i) a abertura dos envelopes deve ocorrer em ato público previamente designado, do qual se lavrará ata a ser assinada pelos licitantes presentes (art. 43, §1º), e (ii) documentos e propostas contidos nos envelopes sejam rubricados pela comissão e pelos licitantes presentes (art. 43, §2º), o que seria inviável em procedimentos virtuais.
Importa destacar, de outro lado, que recentemente a Procuradoria Geral do Estado de São Paulo (“PGE-SP”) manifestou-se de forma favorável à realização de audiências públicas em ambiente virtual, considerando que este meio não prejudica as garantias de publicidade e participação direta da população. Apesar de não haver manifestação semelhante aplicável aos procedimentos licitatórios, inclusive sobre as sessões públicas, nota-se que há uma tendência de que essa intepretação ganhe relevância, principalmente se os efeitos decorrentes da Pandemia se prolongarem.
Nesse cenário, é possível que sobrevenham discussões sobre a possibilidade de apresentação e validação digital da documentação, em substituição à rubrica, inclusive em procedimentos que não ocorram na modalidade de pregão eletrônico. Tal solução, para além de se caracterizar como alternativa no âmbito da Pandemia, estaria alinhada com a recentes medidas adotadas pelo Governo Federal por meio dos Decretos nº 9.094/2017 e nº 10.278/2020, que visam a desburocratização da atuação da Administração Pública, bem como a disciplinar procedimentos de digitalização de documentos públicos e privados para que produzam os mesmos efeitos dos originais.
A título de exemplo do crescimento da tendência à digitalização nos procedimentos públicos, vale mencionar que no caso do Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores (“SICAF”), a Instrução Normativa nº 3/2018, da Secretaria de Gestão do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão determina que o sistema deve ser acessado exclusivamente mediante certificado digital.
Por fim, especificamente quanto ao pregão eletrônico, nota-se que não há qualquer óbice em sua realização, já que o procedimento se dá integralmente na forma virtual, conforme já previsto na legislação.
Dificuldades na obtenção de certidões e documentos públicos
Outro entrave relevante já vivenciado pelos potenciais licitantes é a obtenção de certidões de regularidade fiscal e outros documentos públicos indispensáveis para demonstrar a habilitação dos licitantes (“Documentos” ou “Certidões”). A dificuldade se dá por que alguns órgãos e entidades públicas não dispõem de sistema informatizado apto a disponibilizar as certidões e documentos na forma digital. O mesmo racional se aplica para documentos específicos em setores regulados, como autorizações e certificações da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (“ANVISA”), no setor de saúde.
Diversos entes federativos já expediram atos normativos prorrogando a validade das Certidões, como se pode constatar em informativo já divulgado pela área de tributário de nosso escritório em 13/04/2020. Alguns exemplos nesse sentido são os estados do Espírito Santo, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Mato Grosso e os municípios de Fortaleza/CE, São Paulo/SP e Rio de Janeiro/RJ.
Especialmente no Município de São Paulo, o Decreto Municipal nº 59.326/2020 prorrogou por 90 dias a validade de suas Certidões. Ainda que se considere a prorrogação, é possível emitir tais certidões por meio virtual[1], sendo recomendável que o licitante apresente sempre a certidão mais recente possível, para evitar quaisquer questionamentos de concorrentes.
A ANVISA também suspendeu, por meio da Resolução de Diretoria Colegiada nº 355/2020, diversas obrigações e prazos dos agentes regulados, ressalvando que boa parte dos procedimentos na entidade já são realizados de forma digital[2].
Entretanto, existe a possibilidade de ser exigido Documento cuja validade não foi prorrogada por ato oficial, e que sua emissão ou renovação não seja possível diante das restrições decorrentes da Pandemia. Considerando que a regularidade fiscal deve se referir à sede do licitante (art. 29, III, da Lei de Licitações), se a Administração Pública local não dispuser de sistema informatizado para emissão de Documentos na forma digital, o licitante terá dificuldades em obter a documentação necessária para a sua habilitação.
Nesse cenário, é possível cogitar alguns riscos aos potenciais licitantes, tais como: (i) comprometimento da isonomia do certame licitatório, tendo em vista que licitantes com sede em locais que não possuem sistema informatizado podem ser prejudicados por não conseguir obter os Documentos necessários; (ii) discussões no âmbito do Poder Judiciário ou dos tribunais de contas relacionadas à inabilitação ou desclassificação indevida de potenciais licitantes que foram impossibilitados de obter seus Documentos em certos órgãos e entidades públicas; e (iii) imposição de penalidades administrativas ou até mesmo a execução de garantia de proposta por licitantes que não apresentaram a documentação exigida.
Especificamente quanto ao risco de penalidades, cumpre ressaltar que o artigo 7º da Lei Federal nº 10.520 (“Lei do Pregão”), estabelece as penalidades de impedimento de licitar e contratar com a Administração Pública e descredenciamento do SICAF por até 5 (cinco) anos pela conduta de “deixar de entregar ou apresentar documentação falsa exigida para o certame”. Em outros termos, diante da imprecisão e da redação genérica do texto legal, é possível ventilar a hipótese, ainda que remota, de aplicação de sanções graves nesse caso, mesmo não sendo a medida mais razoável.
Não obstante diversos entes federativos terem prorrogado a validade de seus Documentos, também há o risco de determinado licitante ser habilitado em situação de irregularidade fiscal, em caso de inadimplemento de obrigações tributárias em momento posterior ao da emissão dos Documentos, considerando o prazo original de sua vigência. Tal situação pode ser questionada por concorrentes no curso do procedimento licitatório, se estes dispuserem de meios para comprovar a irregularidade.
Além das situações expressamente reconhecidas pelo ente público contratante, cumpre notar que diversas empresas têm obtido perante o Poder Judiciário decisões cautelares no sentido de determinar às autoridades administrativas que prorroguem os efeitos de suas certidões de regularidade fiscal[3].
Sob outro enfoque, também caberá aplicar o disposto no artigo 22, §1º do Decreto-Lei nº 4.657/1974, ou Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (“LINDB”), que afirma que “em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente”.
Nos termos do dispositivo citado, em muitos casos, a gravidade das circunstâncias ou a inviabilidade de soluções alternativas podem impor ao agente público a adoção de medidas não estritamente conformes às normas legais, e eventuais vícios podem ser superados caso as circunstâncias excepcionais justifiquem a prática adotada.
Portanto, verifica-se que o contexto de isolamento e quarentena decorrente da Pandemia impõe diversos desafios aos gestores públicos em suas contratações. Diante do cenário de incerteza, as circunstâncias excepcionais terão que ser avaliadas de forma individualizada e com razoabilidade pelos órgãos de controle, para compatibilizar o cumprimento das normas vigentes à realidade concreta.
[1] Disponível em: https://duc.prefeitura.sp.gov.br/certidoes/forms_anonimo/frmConsultaEmissaoCertificado.aspx (Acesso em 15/04/2020 às 18 horas e 45 minutos).
[2] http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-rdc-n-355-de-23-de-marco-de-2020-249317431
[3] Um exemplo disso é a recente decisão proferida pela Justiça Federal de São Paulo, nos autos do processo nº 5004843-33.2020.4.03.6100, em que foi deferida a extensão dos efeitos da Portaria Conjunta do Ministério da Economia/Secretaria da Receita Federal do Brasil nº 555/2020, que prorrogou o prazo de validade das certidões negativas, ou positivas com efeitos de negativa, de débitos relativos a créditos tributários federais e à dívida ativa da União. Isto é, a decisão determinou que a prorrogação estabelecida na Portaria tivesse aplicação retroativa, valendo para certidão vencida antes de sua entrada em vigor.
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